Encarnado e Branco

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sexta-feira, 2 de março de 2007

O NÚMERO 1 - BENTO

Quando digo que é um choque receber a notícia da morte de Bento estou a falar de um sentimento forte, e que mistura um sentimento de culpa, e uma tristeza enorme. Não é o drama de perder um familiar, é a impotência de vermos um ídolo partir. O sentimento de culpa é porque penso que morreu um homem que tanto influenciou a minha vida, e eu acabei por nunca lhe dizer isso pessoalmente, nem nunca lhe prestei o devido tributo. Nem eu, nem o nosso clube. Bento merecia uma enorme homenagem por parte de todos nós. E essa homenagem haveria de acontecer mais ano menos ano, porque ele estava vivo, trabalhava no clube, e numa altura especial haveriamos todos de fazer uma grande festa ao Bento com livros editados, dvd’s publicados, e ofertas que o iriam sensibilizar. O destino antecipou-se e levou-o antes de tudo isso.

Não quero dizer com isto que Bento tenha sido mal tratado pelo clube, nada disso! Antes pelo contrário, Bento ficou no plantel do Benfica até aos 42 anos de idade, o clube manteve-o mesmo depois da lesão do México. E até anteontem o podíamos ver a treinar os mais novos na Luz. Só que este homem merecia algo à altura da grandeza dele.

Bento foi o Eusébio da baliza encarnada. Eu estimo muito o Pantera Negra, mas nunca o vi jogar, enquanto que, para mim, o Bento confunde-se com o próprio Benfica.
Eu nasci em 1973, Bento chegou à Luz, vindo do Barreirense, em 1972. A estreia foi em Faro a 22 de Abril de 1973, dois dias antes do meu nascimento. Ou seja, eu nasci já o Bento era o nosso guarda redes!
Mas nessa altura a baliza encarnada era de José Henriques, e Bento teve que esperar pela época de 1976/77 para ganhar a titularidade definitiva.
Eu comecei a viver o Benfica quase no berço, o padrinho da minha irmã ia sempre à Luz, eu ainda hoje vivo bem perto da Catedral e por isso comecei a acompanhá-lo. Depois, havia o meu querido avô que vibrava como ninguém com o Benfica, e que desde sempre simpatizava com a irreverência do Manel. Bem influenciado foi com naturalidade que comecei a olhar para tv quando o Benfica jogava, e tinha eu 4 anos quando uma imagem me marca para sempre. Estávamos em Setembro de 1977 e o Benfica jogava a 2ª mão de uma eliminatória da Taça dos Campeões em Moscovo. Depois de dois empates a zero, com Bento a defender tudo o que o Torpedo chutava, o jogo foi até aos penaltis. Bento defendeu o primeiro, o segundo foi para fora, o terceiro entrou, entretanto o Benfica tinha marcado todos. Quem é que quis ir lá marcar o 4º, e decisivo, penalti? Manuel Bento, claro! Chegou lá e não falhou.
Aos olhos de uma criança de 4 anos é uma loucura, um guarda redes que defende tudo, e ainda marca golos?! Estava encontrado um ídolo admirado por muitos e muitos anos.

Depois foi crescer, aprender o que é o Benfica, estar cada vez mais perto do clube, ver centenas de jogos na Luz e ter sempre uma âncora: Bento.
Para mim não havia dúvidas, o Benfica começava no número 1, o resto vinha por acréscimo. Daí até querer seguir os passos do capitão foi um tirinho. Na altura as nossas brincadeiras resumiam-se a jogar à bola de manhã à noite na rua. Eu não hesitava, a baliza era minha. Isto é, o espaço entre dois calhaus no chão era meu. Como não podia deixar crescer o bigode, e não tinha caracóis tinha que adoptar outra característica para mostrar a minha marca Bento. Então lá andava eu a defender sempre com os braços em arco bem afastados do corpo e ligeiramente inclinado para a frente, imitando na perfeição aquele jeito castiço que Bento tinha quando caminhava. E, claro, as grandes birras com a minha mãe para ela me comprar a camisola Adidas azulada que o Galrinho usava. Consegui convencê-la.

Discussões com os amigos naquela altura eram inúteis, eu tinha o Bento não havia maneira de não os calar sempre. Uns atiravam com o grande Manel Fernandes, ou Jordão, outros idolatravam o grande Gomes, mas eu nem precisava de avançar no terreno e evocar Nené, ou Filipovic, ou Maniche... Não era preciso, para os grandes avançados dos rivais uma palavra: Bento. E pronto, acabava a discussão sobre melhores e piores.
Que melhor incentivo, e lição de garra, pode ter um miúdo de 9 anos ao ver como Bento reagiu a um toque de Manel Fernandes em Alvalade com o resultado em 1-1? Estava ali tudo o que um puto precisa de saber. Se estou deitado com a bola na mão, e o adversário me pisa, mesmo que por acidente, um gajo tem é que se levantar e ir atrás dele e aviá-lo logo ali! Mais nada. Ok, foi para a rua e perdemos 3-1, mas a lição estava dada. Pelo menos comigo funcionou, nunca mais deixei de mostrar os meus argumentos físicos em qualquer confronto.

Ter o Bento na baliza era um descanso de valor incalculável. Os jogos sucediam-se e raramente o via a ir buscar uma bola ao fundo das redes. Na Luz passava muito tempo a olhar para ele quando o jogo estava no outro lado do campo. Bento não parava quieto, corria o tempo todo de um lado para o outro na sua grande área. Estava a aquecer, aprendi eu com os jornalistas da altura. Isto para quando fosse preciso estar preparado para defender. E resultava. Nunca mais vi um guarda redes a aquecer daquela maneira durante os jogos. A maneira como batia com as chuteiras contra os postes da baliza para tirar a terra era única. Eu queria usar chuteiras só para poder imitar aquele movimento.
Depois havia uma imagem de marca espectacular. A maneira como Bento lançava ataques colocando a bola onde queria, no companheiro que queria só com a força do braço e perícia da mão. Os lançamentos à mão do Bento eram impressionantes. Nunca mais voltei a ver tal coisa. Da mesma maneira que um pontapé de baliza dele quase sempre resultava em ataque nosso.
Depois havia os recitais entre os postes, e fora deles. Saltava mais alto que todos, atirava-se para os lances mais confusos com uma convicção incrível. E nos penaltis tínhamos sempre grande esperança que ele fosse lá buscá-la.
Há um penalti na Luz a favor do FC Porto que podia dar a vitória aos azuis. Gomes vai marcar. É preciso dizer que Gomes foi o melhor ponta de lança português que eu vi jogar, por isso quando o via a correr para bola o meu coração quase que parava. Bento defendeu, e como se não fosse nada com ele preocupou-se logo em lançar a bola para o contra ataque.

Bento tinha tanta classe que até nos golos sofridos era uma figura! A imagem era sempre a mesma, um golo sofrido por Bento significava que nos segundos a seguir iamos ter direito a grande correria do nº1 em direcção ao fiscal de linha, ou do árbitro, ou do primeiro companheiro de equipa que apanhasse à frente. A culpa nunca era dele. Nunca! E não era mesmo.
Porque quando a culpa era do Bento então aí era coisa em grande, à séria. Das raras vezes que resolvia enterrar eram momentos épicos de tão raros. Pela Selecção levou 5 da União Soviética em Moscovo. Foi da alimentação. Em Anfield Road levou 3 do Liverpool. Foi da iluminação. Na Luz levou 4 do Liverpool. Bem aí foi do... Rush!
Só que no jogo a seguir, não só recebia monumentais ovações do 3º anel, como rubricava fabulosas exibições. Essas são as mais fáceis de serem lembradas; Estugarda, França’84, o jogo que fez no México 86, na Escócia pela Selecção, em Roma, muitas nas Antas, muitas em Alvalade, e quase todas na Luz.

A minha primeira duvida existencial aconteceu aos 11 anos. Convenhamos que aos 11 anos nenhuma criança tem dúvidas existenciais. Pois bem, eu tive e confrontei a minha mãe com ela. Perguntei-lhe uma noite antes de adormecer, e depois de mais uma tarde gloriosa passada na Luz, o que ia acontecer ao Benfica quando o Bento deixasse de jogar?! Ninguém me soube responder. Fiquei sempre com essa angústia no meu subconsciente. O meu problema não eram os anos seguintes, sim porque eu sabia que o Bento ia durar até eu ser adolescente, ele não se lesionava, muito raramente ele perdia um jogo. Para mim era tão natural ter o Bento em campo como estarem lá as balizas, ou os postes com as bandeiras dos clubes a jogar atrás da baliza. Mas quando ele saísse?!
Assim foi uma forma de me preparar para esse dia, nunca me tinha passado pela cabeça como seria depois de ele morrer. Isso nunca me passou pela cabeça.

A verdade é que em 1986 ele tem a lesão, até aí foi coisa em grande. Uma lesão a sério, à Bento! Pé partido. Pronto, estava levantado o drama.
O Benfica tal como eu o conheci, e como me foi apresentado tinha acabado, porque esse era o “Benfica do Bento”. A partir daí foi assistir ao esvaziamento da tal mística benfiquista, e ver a baliza encarnada desprotegida. Ver o Silvino a titular não fazia sentido. O Silvino jogava no Setúbal, e no Aves!! Como era possível ir para o lugar do Bento?! O Neno era bom moço, mas também não convencia. Esses dois juntos não faziam um Bento. E depois? Ver o Bossio naquele lugar dava vómitos. O único que dignificou o nosso nº1 foi o belga Preud’Homme. Mas não foi melhor que o Bento, nem pensem nisso! O Bento foi o melhor, e o único à sua altura foi o Damas.

Sorte tem o meu avô que agora tem do lado dele os dois melhores guarda redes que eu vi jogar, só que os derbies que vão fazer do outro lado vão todos acabar zero a zero. Com o Bento a protestar muito.
Muito obrigado por tudo Bento, até sempre.

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posted by J G at 12:33 da tarde

25 Comentários:

Grande João, bonita homenagem a um grande guarda redes.
Blogger Bancada de Leão, at 2:02 da tarde  
Uma justa e muito pessoal homenagem.
Blogger Spinafro, at 2:03 da tarde  
Gostei do post. Sentido como quando se trata de exaltar a memória. Associo-me a ambos. Ganda Bento!
Blogger Marx, at 2:32 da tarde  
Belo texto. Parabéns.
Blogger Paulo, at 3:00 da tarde  
Magnifico texto!
Blogger Pedro Neto, at 3:06 da tarde  
Tenho 27 anos e a unica vez que vi Bento na Baliza foi num particular de pré-epoca na Póvoa contra o local Varzim,devia ter uns 10 anos.Tinha a perna enfaixada,não sei porquê.Uns diziam:"está acabado"....outros retorquiam:quem dera que todos estivessem acabados como ele.Nesse jogo senti a sua grandeza.
OBRIGADO.
Anonymous Anónimo, at 3:08 da tarde  
Disseste tudo!
Anonymous Anónimo, at 3:24 da tarde  
:-) Bonito!

Lia
Blogger lia, at 4:44 da tarde  
Tenho 24 anos, e infelizmente o meu sentir do Benfica já não tem memorias do Bento a jogar..mas como apaixonado pelo clube cedo percebi que na historia gloriosa deste clube ele tinha muitas paginas...sou frequente visitante deste blog, porque aqui encontrei alguem que me faz sempre pensar que realmente ser do Benfica é especial...este texto é realmente mais uma prova disso mesmo...obrigado a ti pelo texto e pelo blog e ao GRANDE BENTO por tudo que nos deixou e que o tornaram Imortal..
Blogger carlao17, at 4:47 da tarde  
Parabéns pelo texto, João. Conseguiste escrever muito do que me vai na alma também. Aquelas tardes na Luz com ele a correr de um lado para o outro na grande-área e a mexer os braços, e a bola do outro lado do campo, são inesquecíveis. O Eusébio da baliza... É que é isso mesmo! Deixou-nos cedo demais...
Blogger S.L.B., at 4:55 da tarde  
A leitura deste texto foi o momento mais emocionante desde que soube da morte do nosso Bento. Muito Obrigado, ao Bento e a ti João.
Anonymous Anónimo, at 5:37 da tarde  
Grande Bento! Foi um dos meus heróis, e "ensinou-me" a ser guarda-redes.

António Vitorino
(Mas não, não sou esse...)
Blogger Debaixo do Bulcão, at 5:51 da tarde  
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anonymous Anónimo, at 5:52 da tarde  
Maninho....pelo meio das reuniões e apesar da tristeza que possa trazer a morte de alguém, soube-me bem ler este teu post... Tás lá!
Sempre com sentimento, mas realista...nada de lamechices.
É isso mesmo, foi grande o Nosso Bento, era pirralha e lembro-me dele.
Lembro-me tb das tuas birras intermináveis e de me pedires dinheiro para comprares a Bola! Ehehe. tinha que por esta pelo meio...desculpa lá.
E já agora, lembro-me de partirmos janelas nas varandas e a mae não gostar muito disso...porque seria????

Viva o Anderlecht! (Agora, não entro em casa....tou mm a ver)
Blogger Sapos Xoros e After Eights, at 5:52 da tarde  
Para ti Gonçalves.
O Bento não andou sempre lá, e tu sabes. Assim como quiseste saber o que foi feito do Damas, do Manel, do Jordão, também eu sempre quis saber onde andava aquele malvado que tantos golos nos roubou! Aqui há uns anos andava lá por cima pelo norte, Leça, se não me engano.
Não sou apologista de que a partir do momento em que se joga por um clube se deva erguer uma estátua, mas há casos à parte. O Bento era um deles. Não uma estátua, mas o reconhecimento. Porque é que um jogador destes, brilhante, que personifica tudo o que o vosso clube é, há-de sair alguma vez? Aliás, pergunta: Como é que alguma vez ele próprio se permite sair do clube? Irrita, mas é verdade!
Tenho o exemplo do Damas e chega-me!
Para mim o teu Eusébio, é o meu Peyroteu e os meus 5 violinos. Nascemos tarde. Mas já viste que se fosse assim, não estaríamos aqui a partilhar sentimentos a propósito de um gajo, baixinho, diga-se, mas que era um raisparta dum elástico que ia buscar a maior parte delas.
João, só te faltou aquela merda das bolas de plástico manchadas de verde e vermelho, o Porto não existia, que não tinham nada a ver com bolas de futebol. Um pontapé mais forte e a bola de plástico tinha de ser substituída por uma de trapos enrolada em fita. Uma de papel também estava bem. Toda a pequenada, apesar da barricada contrária, curtia o Bento. E eu, que grande respeito que tinha por ele. Ganda guarda-redes, com amor ao clube e sem pensar no cheque no final do mês. Tomara eu que este futebol voltasse a existir...

Carlos Coelho
Anonymous Anónimo, at 12:19 da manhã  
Muito bonito. Arrepiei-me toda. ***
Anonymous Anónimo, at 10:27 da manhã  
Magistral, meu caro.
Pela simplicidade e pelo sentimento.
Ainda assim, tenho a certeza de que todos nós preferiamos não chegar nunca a ler estas linhas. Seria sinal de que os nossos corações estariam muito, muito menos tristes neste momento.
Anonymous Anónimo, at 10:45 da manhã  
João, obrigado por escreveres o que eu queria ter dito do Bento.
Sou um pouco mais velho que tu, mas as memórias do grande Bento são
praticamente as mesmas - e inesquecíveis - com o trunfo acrescido em
batalhas verbais adolescentes de puto recém despejado em Lisboa de poder
dizer, com todo o orgulho, que o Bento tinha começado a jogar nos juniores
do clube da minha terra, o Atlético Riachense, de que sou sócio ainda há
mais anos do que do Benfica!
Recordas o jogo contra a Escócia, foi só o melhor jogo que vi um
guarda-redes fazer em toda a minha vida, praticamente sozinho contra a
equipa adversária, que Portugal ainda estava sob a influência desse tremendo
equívoco que era o Pedroto.
O penalti defendido ao Gomes teve, ainda, o tempero da explicação dada pelo grande Bento no fim do jogo: disse que sabia que o Gomes andava a marcar os penaltis em força e que
quando assim era chutava sempre para o mesmo lado!!!!
Obrigado Bento, por todas as emoções.
Carlos
Anonymous Anónimo, at 2:10 da tarde  
Grande texto, João. E com que eu me identifico muito, já que temos quase a mesma idade (são cinco meses de diferença), também eu vivo mesmo ao pé da Luz, e também eu partilhei dessa admiração incondicional pelo Bento. O Bento era o Benfica, e depois de ouvir na rádio o nome do Bento, tanto fazia quem seriam os outros dez.

E bem me lembro quando o Bento se lesionou no México, a minha prmeira reacção foi pensar 'E agora, como é que vai ser?'.
Blogger D'Arcy, at 12:51 da manhã  
nem tenho palavras...

até sempre bento
Blogger Ricardo G. fmshark, at 8:21 da manhã  
Parabens João, de certeza q Bento se emocionou a ler este texto!!!!
Blogger Pedro, at 11:00 da manhã  
Lindo, João! A tua alma na ponta dos dedos...
Anonymous Anónimo, at 11:47 da manhã  
Infelizmente moro no Norte e nunca tive essa facilidade de poder ver o Bento jogar todos os fins-de-semana, mas ia ver sempre os jogos aqui por perto, ainda miúdo temos praticamente a mesma idade, e a primeira vez que fui à Catedral era o grande Bento que lá estava na baliza. Julgo que todos os da nossa geração se identificam com aquilo que muito bem aqui escreveste.

um Abraço!
Blogger Lampião do Norte, at 7:14 da tarde  
Excelente texto o teu,amigo.
Tenho 33 anos e Bento faz parte das minhas alegrias e da minha emoção de ser Benfiquista.
Sem dúvida Bento está no Olimpo dos melhores guarda-redes da história do futebol mundial.
Obrigado a ti pelo excelente texto e pelo blog e ao GRANDE BENTO por tudo que nos deixou e que o tornaram Imortal.
Para sempre presente.
Anonymous Anónimo, at 11:08 da tarde  
so sei que para onde foi o BENTO foi uma grande aquisiçao e vai ser titular de certeza e os socios vao vibrar como nos benfiquistas vibraram e ja agora este golo da morte de cereteza que não foi frango não havia defesa possivel

saudade e um grande aplauso
jorge henrique
Blogger jorge henrique, at 11:50 da manhã  

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